Memórias Narrativas Visuais da Fronteira do Género: Performance de Corpos Vestidos


por Violeta Arvin Casoni, Carolina Brandão Piva, e Luciene de Oliveira Dias


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Figura 1. Vasco Szinetar, Las Libertadoras, 1990. Fonte: Acervo Instituto Moreira Salles. 



Carol Piva / @carol.piva
Pós-doutoranda e professora vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás, Brasil. Doutora em Arte e Cultura Visual, mestra em História e licenciada em Letras e Literaturas. Membra da IAFOR (International Academic Forum) e IAMCR (International Association for Media and Communication Research). Campos de interesse: Performances Culturais, Autoteoria, Estudos de Mídia, Comunicação Digital, Cultura Visual, Gênero e Sexualidades, Epistemologias Feministas.




Luciene Dias / @luciene.o.dias
Professora da UFG, com atuação no Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais, da Faculdade de Ciências Sociais, e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Informação e Comunicação. Coordenadora do Pindoba-Grupo de Pesquisa em Narrativas da Diferença-UFG. Pesquisadora do Coletivo Rosa Parks-UFG. Pesquisa raça, racismo e antirracismo, gênero e sexualidades em interface com os estudos de Comunicação, Performances Culturais e Antropologia. Doutora em Antropologia. Mestra em Ciências do Ambiente. Especialista em Cultural Studies pela University of Arkansas (EUA). Jornalista graduada pela UFG.




Violeta Arvin Casoni / @dejenjibre
Mestranda em Performances Culturais na Universidade Federal de Goiás, bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). É graduada em Sociologia pela Universidade de Playa Ancha no Valparaiso/Chile e especialista em Gênero, Corpo e Metodologias Qualitativas. Faz parte do Pindoba-Grupo de Pesquisa em Narrativas da Diferença-UFG e do Núcleo de Pesquisa em Género e Sociedade Julieta Kirkwood-Universidade de Chile. Com interesse em estudos sob corpo, gênero, sexualidades, raça, classe, roupa e estéticas do cotidiano em interface aos estudos de performances culturais, ciências sociais, epistemologias feministas e cultura visual.

Introdução


O presente artigo tenta aprofundar na roupa e o corpo como lugares performativos para expressões de gênero. Para esse intento, acionamos registros fotográficos de pessoas trans no Chile, Brasil e Venezuela, com o recorte temporal das décadas de 1970, 1980 e 1990. As imagens compõem a produção das  artistas Madalena Schwartz e Paz Errázuriz e do artista Vasco Szinetar em contextos de criação no curso de ditaduras militares. Com o propósito de problematizar os mandatos hegemônicos em torno do gênero, do corpo e das sexualidades, investigamos a mobilização da memória sexual dissidente de outros tempos cotidianos e suas possibilidades a partir das performances de corpos vestidos. [1]

Os dois trabalhos de cada artista escolhidos para a presente análise foram retirados: (1) do projeto Manzana de Adán, da fotógrafa chilena Paz Errázuriz, que consiste em uma série de fotografias tiradas entre 1982 e 1987 em bordéis nas regiões de Santiago e Talca, no Chile; (2) da série Las libertadoras, produzida pelo fotógrafo venezuelano Vasco Szinetar; e (3) de uma série não identificada da fotógrafa húngaro-brasileira Madalena Schwartz.

Performances de Corpo, Gênero e Roupa


A roupa tem desempenhado um papel importante como expressão cultural nos últimos tempos, como reflexo do nosso ambiente social, político e histórico. Além disso, a roupa pode ser um dos elementos que contribuem para desnaturalizar a categoria gênero e permitir que ela seja compreendida como uma construção social. Seguindo as formulações de Judith Butler caberia perguntar-se quais são as performances cotidianas onde a roupa tem um lugar importante que justificaria a punição social pela ordem dominante de certos corpos. [2]

Como primeiro lugar de encarnação a abrigar as roupas, o corpo se torna um meio de expressão que existe permanentemente, não há possibilidade de estar ausente dele, sendo esta uma qualidade ontológica da sua existência. [3] Não é possível separar a experiência do corpo dos padrões culturais em que ele é encontrado e reconhecido. Nesse sentido é um corpo simbólico, um corpo cultural. A roupa acompanha a qualidade do tecido fluido em todos os momentos para reforçar a sua atuação nos diferentes espaços que ocupa.

O adorno do corpo torna-se relevante para pensar a roupa como extensão do eu. Desde o simples olhar para um corpo em cena, o que abre caminho para uma primeira compreensão que, certamente, não será a única. Há uma composição de aparência em relação às nossas experiências.A roupa e o corpo fariam parte de uma performance da existência contemporânea. [4]

Para os estudos das performances os objetos adquirem um valor especial, além da particularidade do tempo, de suas regras e dos espaços que se tornam frequentes. [5] As práticas do vestir dão origem a uma performance que possibilitam a construção de uma identidade e a reflexão de um tempo cultural situado.

Tradicional e historicamente, a categoria gênero, por sua vez, tem sido produzida a partir de uma posição binária, pois teria apenas duas possibilidades de existência, a partir de uma rotulação do corpo em termos de sexo (macho-fêmea) e gênero (masculino-feminino). Enfatizando uma narrativa hegemônica fixa, imutável, racista, classista, heterossexista, normalizadora e opressora, assumida como natural e social. [6] Em consequência, ao mesmo tempo, a performance de gênero dominante pode aparecer de duas maneiras: cis e trans, ambas visibilizam construções sociais e performatividades, mas a performance trans ficaria em evidência por não se encontrar dentro da norma. [7]

Ainda que a categoria gênero tenha uma qualidade estruturante, trata-se de um lugar potencialmente criativo de significados e que se coloca como alternativa à normatividade compulsória. A partir desse aspecto a roupa adquire possibilidades, em uma de suas funções, como a de cobrir o corpo, de favorecer a subversão dos mandatos hegemônicos que a compõem, estruturada pela indústria da moda em Ocidente. [8] Torna-se preciso sentir-pensar a composição de uma narrativa visual por meio da roupa, os acessórios e o cabelo, para além da indústria da moda, o estilo pode estar dentro e/ou fora dele. [9]

Essa narrativa visual que pode se encontrar dentro e/ou fora dos regímenes da indústria da moda, possibilita que a performance binária da dimensão de gênero seja suscetível de ser alterada por meio de indumentárias em corpos que potenciam o que poderia ser sentido|pensado como novas ontologias cotidianas, múltiplas e diversas. Tais potências desestabilizam os estatutos dominantes do que se entende como “feminino” e “masculino” abrindo caminhos para horizontes múltiplos, diversos e em movimentos constantes na performance dos corpos.

Cada performance cotidiana como atos corporais espontâneos, pode ser lida como práticas de resistência. [10] Dessa forma, convites para pensar sexo e gênero demandam a certeza de que aqui não há transparências ou neutralidades. Os corpos vivenciam intensamente, o implica em uma simultaneidade de dimensões a serem trabalhadas, a exemplo da episteme, prática, ato, processo, transmissão, evento e intervenção no mundo. [11] O ato de vestir faz parte de uma relação social, cultural e histórica entre o corpo e a roupa. [12] A roupa como construção performativa torna-se mais um mecanismo que dá inteligibilidade à matriz heterossexual. [13]

Aparecem nesses contextos com maior visibilidade ou não, dependendo da época, corporalidades que irritam e incomodam o olhar público, instituições e bons costumes, onde a transgressão dos códigos torna-se objeto de sanção. Sanções que passam por diferentes camadas, desde desprezo, caretas, dizeres, cercos e insultos no espaço público, exclusão total dos mecanismos sociais de proteção e melhoria da qualidade de vida, até a morte.



Figura 2. Paz Errázuriz, La Manzana de Adán, 1980. Fonte: pazerrazuriz.com.

Em sociedades tão violentas, aqueles marcadores de diferença que quebram visualmente os códigos dominantes estão permanentemente em risco. Ainda que se mantenha uma memória de violência que recria performances indumentárias que buscam proteção em contextos socioculturais profundamente violentos, a fuga tem sempre um espaço de ser/existir, como possibilidade, uma desobediência que pulsa fortemente como sentir|pensar. A fuga como a rota, perigosa, que exige cruzar fronteiras fora das convenções dos Estados-nação. [14] Essas divergências, as de ontem e as de hoje, dão conta de atos que ressignificam categorias, criação, resistência e insistência de experiências que “exigem” espaços que possibilitem uma vida digna.

Uma subversão do código que está fora das práticas políticas conscientes, definidas, premeditadas ou inseridas em alguma militância, mas onde parece que um desejo|sentir|pensar|fazer procura suas próprias possibilidades de ser. O corpo trans torna visível uma existência que problematiza, a partir de sua própria experiência, quais são as possibilidades de um corpo marcado pela diferença de raça, gênero e classe, e questiona o status dominante de uma cis-normalidade ao imaginar o corpo em relação ao mundo. [15]

A performance de corpos cobertos por roupas, de vidas trans, abre a possibilidade de uma resignificação do código neoliberal/racista, sexuado, heteronormativo, que transforma o corpo em objeto de desejo, comercializável de certa forma, sob certas condições e com certas aparências. Nessa construção imposta prevalece o imaginário branco, cisheteronormativo e de classe média. O uso de roupas, suas peças, cores, formas e possíveis combinações também são lidos sob esta matriz de características rígidas e inamovíveis. Em que cada corpo, marcado por uma diferença que define um fato biológico, corresponde a certas peças de vestuário e não a outras.

Encontraremos performances de vestuário que aparecem fora dos circuitos da moda, uma das muitas indústrias, o que em termos gerais reforçará os paradigmas dominantes de exclusão e desigualdade no Ocidente. [16] Em que certas peças de vestuário, associadas a certas corporeidades, serão deslocadas dos ambientes onde se espera encontrá-las, abrindo também o caminho para a confusão, divergência e imaginação. Mayra Cotta e Thais Farage destacam, a este respeito, que “as roupas disponíveis não são apenas um reflexo objetivo da sociedade, mas um meio capaz de transformar estruturas e de estar profundamente conectado à tradição criativa de produção de imagens”. [17]

A moda aparece como um espaço de neutralização do potencial simbólico. [18] Pessoas comuns que dariam conta dessa outra forma em que as escolhas estéticas do vestuário se movem em direções difusas. Eles mostrariam como a moda e a prática diária de vestir correriam por caminhos diferentes, com alguns pontos de convergência.
Há aspectos do ato de vestir, de realizar o gênero, através do vestuário que escapam dos circuitos da indústria da moda. Estes aspectos estão ligados a tendências estéticas que geralmente estão fora dos contextos sociais e culturais que os acompanham. [19]

Figura 3. Vasco Szinetar, Las Libertadoras, 1980, Acervo Instituto Moreira Salles.

Memória Corporal e Performances


A memória envolve uma reflexão que nos permite compreender a vida, onde o ato de lembrar aparece como uma metodologia que constrói relatos que têm sido silenciados pelas narrativas hegemônicas da história. [20] Assim, traçar algumas trajetórias divergentes de gênero e como trazem práticas desestabilizadoras através de uma construção performativa da roupa, na história, implica reconhecer os traços do passado presente em nossa contemporaneidade.

Diana Taylor reflete sobre a performance como um lugar entre o arquivo e o repertório, como espaço que conta histórias, onde a transmissão acontece de modos misturados. [21] O repertório de um pensamento corpo se movimenta entre arquivos e o corpo, como produto de experiências, memórias pessoais|íntimas, traumas históricos, crises sociopolíticas e espaços formados. [22]

A memória dos corpos combina práticas efimeras e permanentes, que não são imunes ao passar do tempo, muitos atos desaparecem, mas pela ação da memória são reconstituídos. [23] Nessa reconstituição é que se consegue uma transmissão cultural que ao mesmo tempo cria comunidade. Transmissões que acontecem num tempo que é espiralar, é curvo, que se encontra para além da história e que é composto por um repertório que visibiliza elementos orgânicos, sensoriais e gestos. [24]

Nos trabalhos fotográficos escolhidos, feitos por Madalena Schwartz, Paz Errázuriz e Vasco Szinetar é possível assistir retratos de vidas de pessoas trans nas décadas de 1970, 1980 e 1990, em meio às ditaduras militares e da emergência do AIDS. Trabalhos que acontecem entre contextos de comoção, schok e terrorismo de Estado: execução política, sexual e física, exílios, desaparecimentos e persecuções. [25]

Diante do terror das administrações totalitárias da América Latina naquela época, o glamour das festas e dos espetáculos, parques, prostíbulos, bairros e casas emerge um contexto de uma dissidência sexual que se torna visível, o que era impensável até então, criando memórias quotidianas.

Retratar nesse momento, sociopoliticamente tão particular, abre um gesto que implica risco, abertura e sensibilidades para vidas marginalizadas. Apesar de alguns deles refletirem um cenário cosmopolita, como é o caso do Brasil. Apresenta-se-nos cenários que  estão muito mais presentes do que imaginamos nas nossas vidas “normalizadas”, reconhecendo o direito à existência.

As memórias criadas em ditaduras militares são importantes, especialmente aquelas que são parte de quem foi dissidente como de quem resistiu.  As fotografias feitas por Madalena, Paz e Vasco fazem parte do arquivo Latinoamericano de memórias trans. São fotografias que dialogam espiralmente com a temporalidade das corporalidades contra hegemônicas e que fazem parte de uma reconstrução das memórias da diferença.

Fotografias de pessoas que se deixam retratar fora do hábito de preparar a pose e, ao contrário, abrem o espaço de suas vidas para conhecer outros aspectos e profundidades de quem são em frente à câmera. A vida cotidiana acontece como um estudo improvisado de experiências que se infiltram na vida heterossexual com um ativismo não consciente de si mesmo, da resitência que envolve o uso de seus trapos, saias, saltos e rendas.

As fotografias mostram um interesse por uma dissidência que não tem substrato político partidário, o que é muito importante, mas que reflecte no dia a dia, com uma performance estética e artística, que se apresenta como um lugar que reafirma a diferença, revelando mundos que não interessavam para Brasil, Chile e Venezuela, e que, talvez, em dimensões diferentes, ainda não interessam.

O ato de reminiscência, neste trabalho, procura criar tensão num passado que fica confiscado no tempo, para visibilizar uma história que tem um percurso movimentado. Esse exercício de recordar traz uma prática de memória que se encontra viva, de corpos que fazem trânsitos. Os corpos trans e os seus modos de cobrir o corpo, em outros tempos e agora, “são corpos que colocam em suspensão tudo o que é normativo e que desestabilizam modelos hegemônicos", para sublinhar que as pessoas não são [somos] simplesmente receptoras de sistemas sociais, mas que existe também uma agência que é orientada para sua transformação.  [26] [27]

Nos perguntamos, nas complexidades em que se movimenta o arquivo e o repertório, cómo pensar na roupa como objeto de memória que evidencia situações do passado, que permanece como materialidade, mas que transporta memórias de outras performances, que tornam visíveis outras formas de transmissão e permanência, de corpos que caminham com essas roupas. De roupas que estão em corpos que provocam as formas de estar no mundo. Da composição de um estilo que provoca o olhar hegemônico. De roupas que evocam lembranças de esses corpos que se movimentam pelas fronteiras, que borram as fronteiras de gênero e exploram outros modos de existência.

Corpos de pessoas trans, como corpos divergentes de gênero de décadas passadas, abrem múltiplos significados a partir da inversão performativa da roupa. Esta tem adicionado aos significados o potencial aumento da visibilidade de gênero, em uma vida que transforma os imaginários cotidianos em torno das possíveis narrativas do código, das quais é possível encontrar registro em diferentes momentos da história.

Embora a fotografia seja essencialmente um símbolo do passado, no tempo espiralar, ela permite articulações e transformações que são obstinadamente reconstruídas como intemporais e em devir. O tempo verbal vagueia por estilos que se re-significam constantemente, criando memórias colectivas que estão vivas e em movimento e acionam afetos.


Outros Tempos: Momentos Visuais de Corpos Contra Hegemônicos


A partir da série Las libertadoras, do fotógrafo venezuelano Vasco Szinetar, percebemos visualidades que traçam outra praxe do corpo. Na Imagem 1, uma figura ocupa o centro, como uma esfinge olhando para o horizonte com uma postura corporal perfeita, em uma situação social relaxada. Esta, por sua vez, a assiste com roupas que parecem glamourosas para a ocasião, roupas que permitem um vislumbre da silhueta, e com um gesto tradicionalmente compreendido como feminino para segurar sua bolsa de mão. Treinadores, jeans, estampas, pescoços em “v” que prenunciam o busto.

Não há brilho, lantejoulas, cabelo e maquiagem eloquentes; uma vida pedestre é exposta, cotidiana, comum, simples. Performances de corpos que vestem trajes que não seguem a moda, onde não há renovação constante e que levantam fronteiras com respeito ao ethos dominante que permeia as expressões e identidades de gênero, assumindo orientações sexuais perigosas. [28] A expressão de perigo utilizada nesse texto remete a necessidade de provocação acerca da afronta que se instaura sempre que o acionamento corporal subverte a expressão cisheteronormativa do gênero.

Como na Imagem 2, a verdade do sexo não pode ser percebida através do tecido, através de seu ajuste ao corpo. Embora a linha traçada pela peça de vestuário delineando a carne não revele um corpo tradicionalmente lido como feminino: busto predominante, cintura pequena e bunda proeminentes, nem a queda das peças que o acompanham, há uma postura corporal que evoca gestos de práticas femininas. Tal evocação pode ser percebida no prazer de ser observada com um sorriso de aprovação da presença da câmera/olho que retrata numa relação de diálogo, por um lado, e de uma senhora que parece estar esperando por alguma informação importante, como qualquer mulher no cotidiano de seu bairro.

Não há regras sobre como usar uma peça de vestuário, nem valor, nem significado que dê um lugar privilegiado a uma indústria que define a ética do bom vestuário. Ao contrário, há criatividade, resistência, insistência e enunciação no espaço público, em lugares que compõem a cultura. Em atividades rotineiras que administram outras visualidades quando se vai às compras na loja da esquina, desfrutando de um parque, ou da vida social a partir do limiar do lar que se habita, na fronteira do pessoal e do público.

Há uma silhueta que é colocada em tensão, que sustenta na cultura ocidental estereótipos de como um corpo “feminino” e “masculino” deve parecer/ler, projetando não apenas um gênero, mas uma narrativa de compostura, um dever de ser e uma forma de se mostrar em público. A tradicional figura masculina que renuncia ao adorno é enterrada no subsolo em um gesto de rebeldia, em corpos que “mal” interpretam o gênero e a moda. [29]

Tradicionalmente o sistema de vestuário responde a uma lógica binária de gênero, o que faz com que os corpos se tornem instrumentos que devem acompanhar a rotulagem anatômica, onde cada peça de vestuário corresponde a uma peça de corpo. A arbitrariedade do cânone cisheteronormativo em vestuário é quebrada, subvertida e transgredida, para abrir o caminho para diversas performances de corpos vestidos, a partir de narrativas visuais/têxteis de gênero. Neste sentido, Del Campo afirma que “vestir el cuerpo es instaurar en él la marca de la cultura, establecer sobre él un sistema de signos sobre el que se sustenta la noción de persona, ciudadano, sujeto social”. [30]


Figura 4. Paz Errázuriz, La Manzana de Adán, 1980. Fonte: pazerrazuriz.com.

Surgem, assim, vários eventos estéticos ou contra-esteticos, narrativas visuais, pequenos ruídos que perturbam o status quo de quem pode, seguindo os padrões cisheteronormativos, habitar a cidade. A instabilidade provocada por diversos órgãos, com trajes que potencializam uma espécie de protesto contra os mandatos de gênero, raça, trabalho, classe, sexualidade e moda. Como as ruas da capital de Venezuela nos retratos de Vasco Szinetar, na Imagem 3. Uma delas desafia as convenções que delimitam a necessidade social de um corpo a ser revestido, a nudez é inadequada em praticamente todas as situações sociais, mesmo aquelas que a reforçam (roupa íntima, biquínis, saias e calções curtos, decotes mergulhantes). [31] Corpos que desafiam uma série de performances que reproduzem e identificam as mulheres e as feminilidades como objetos de desejo. Corpos que quebram com a altura média do que se espera em um corpo feminino, da cor da pele em um corpo feminino, do cabelo entendido como bonito, expondo um cabelo lido como "rebelde", o que evoca uma falta de "seriedade" ou "sujeira", a partir do imaginário cis/hetero/branco/magro normativo. [32] Corpos que rompem com o que é potencialmente desejável pelo status quo, ocupando o espaço público, tradicional e historicamente negado.

Linha de fuga que acompanha com força os fluxos de uma vida, que desorganiza uma situação, e mostra outras paisagens existenciais, outras composições vitais, num ato de desmarcar a ordem instituída, dando espaço a outras possibilidades de existência no mundo. [33] As roupas e os gestos que acompanham cada roupa funcionam como uma estratégia de fragilização das formas consolidadas de cobertura do corpo, que insistem em reduzi-lo a esquemas binários.

A cenografia, em vários tons de azul vibrante, que desajusta o compromisso de uma cor com a causa das masculinidades com os personagens da Imagem 4, parte da coleção de Paz Errázuriz, entrelaça atividades oficialmente atribuídas às funções femininas. Uma mesa, no meio de uma cozinha dilapidada, é o local de várias obras. Uma das primeiras apresentações para tornar-se mulher poderia ser a relação com colocar maquiagem no rosto e, ao mesmo tempo, ressignificar o espaço juntando comida, no que parece ser um pedaço de frango e um pouco de pão, de um lado, e sombras, batons, delineadores de olhos e rímel, de outro da mesma mesa. A figura da pessoa que corta o pão enfatiza o símbolo da fronteira ao usar uma camiseta esportiva com gola redonda e manga ¾, que poderia ser associada a uma figura masculina, mas que provoca o olhar de quem observa, uma vez que traz maquiagem intensa em seu rosto. Essas “misturas” de ações, corpos, roupas e cenários, levam-nos a sentir|pensar de fato como é que acontece, numa vida qualquer, o traspaso de fronteiras normativas.
Figura 5. Madalena Schwartz, retratos não identificados, anos 1970. Fonte: Acervo Instituto Moreira Salles.
As roupas permitem, como um passaporte, a circulação por outros mundos. [34] Mais do que dizer quem somos, as roupas falam dos comportamentos na vida cotidiana. Pensemos nas roupas como protocolos de experimentação, nos quais o sujeito entra, impulsionado a criar respostas às forças das ordens instituídas e a realizar experimentos sociais, políticos, emocionais, materiais e subjetivos.

A Imagem 5, de Madalena Schwartz, poderia condensar a ideia desse laboratório cotidiano do que poderia ser experimentar por meio do corpo performances de gênero, como uma performance cultural, em um corpo que se expressa a partir de uma alteridade que a ordem social nega. Eis o desfrute de um adorno profundo, a partir da forma dos cabelos e das flores que realçam uma figura feminina. Vestidos que revelam ombros, decotes mergulhados com um glamour interrompido pela pilosidade dos braços que “devem ser” desprovidos de cabelos.

Como Gloria Anzaldúa menciona, os territórios fronteiriços transcendem os limites geográficos para se situarem em afetos, psicologias, sexualidades, corporalidades e espiritualidades. [35] Habitar o território fronteiriço seria habitar as linhas difusas e vagas que estão entre o que é claramente definido como o bastião da normalidade, da sanidade, do que é certo, do que simplesmente “é” e, portanto, não é pensado/sentido neste mundo.


Palavras de Finais Abertos


Neste trabalho, quisemos reflectir sobre narrativas visuais de fronteira que aparecem na composição de um estilo através do vestuário numa parte do território conhecido como América Latina. Cómo essas decisões põem em tensão uma ordem de gênero dominante patriarcal, racista e classista. Assim como outras zonas periféricas que nos atravessam como sujeitos marcadas/es/os pela diferença, expondo outras formas de existir em outros tempos. Tempos tradicionalmente localizados no que seria o passado, mas que na prática de lembrar nos mostram como estão presentes na nossa contemporaneidade. Aqui o fato de recordar torna-se uma prática viva, situada, em constante movimento, num gesto que procura criar memórias feministas das corporalidades que têm sido silenciadas pelos relatos dominantes.

Sentimos|pensamos que as imagens apresentadas mostram guarda-roupas que não competem com o mercado da moda, em que a possibilidade de escolha no sentido capitalista é limitada, estruturando outras possibilidades. Atuações periféricas diante de mandatos institucionais – mas centrais – para o traçado de caminhos que têm gerado possibilidades na visibilidade da existência de corpos historicamente silenciados e perseguidos. Identidades socialmente construídas que se formam em encontros com outras, na topografia das ruas da cidade e nas trivialidades da vida cotidiana.

A roupa pensada como cultura é atravessada, assim, por performances cotidianas que desestabilizam o gênero imposto a corpos que buscam insistentemente se desviar da norma. A performatividade expressa nas imagens aqui expostas rompe com uma identidade única e propõe existências plurais, quando falamos de corpos e constituição dos espaços.

O gesto de tornar visíveis as fronteiras normativas e o que foi normalizado, salientando como estas regulamentações aparecem naquilo a que chamamos práticas diárias de vestir, práticas ordinárias, que não procuram colocá-las num lugar secundário ou sem importância, pelo contrário, procura problematizar e mostrar como o extraordinário da vida aparece na nossa vida quotidiana, nos nossos diferentes corpos, reconhecendo as suas complexidades, agências e resistências em espiral de temporalidades. 
Ao mesmo tempo, contudo, convidamo-lo a ler estas abordagens como reflexões abertas, longe de interpretações que procuram “autenticidade” ou "verdades", pois o acto de recordar e criar memória é sempre uma prática social situada e contextual. [36]



Notas: Memorias Narrativas Visuais de Fronteira

[1] O presente artigo integra as discussões propostas na dissertação de mestrado de Violeta Arvin Casoni, em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás, Brasil, sob a orientação da Profa. Dra. Luciene de Oliveira Dias e coorientação da Profa. Dra. Carolina Brandão Piva. A pesquisa conta com o apoio financeiro da FAPEG – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás.

[2] Judith Butler, Cuerpos que importan. Sobre los límites materiales y discursivos del “sexo” (Buenos Aires: Paidós, 2008).

[3] Renata Pitombo, “Corpo, moda e performance” (conferência apresentada no VII Seminário Corpo, Moda e Performance, modalidade on-line, de 3 a 11 de novembro de 2021).

[4] Ibidem.

[5] Antonio Herculano Lopes, “Performance e história (ou como a onça, de um salto, foi ao Rio do princípio do século e ainda voltou para contar a história)” Fundação Casa de Rui Barbosa, 1994.

[6] Lelya Troncoso Pérez, “Mujeres revolucionarias y resistencias cotidianas. Reflexiones sobre prácticas feministas en Chile” Clepsidra: Revista Interdisciplinaria de Estudios sobre Memoria, v. 7, n. 14, 2020.

[7] Dodi Tavares Borges Leal, “Performatividade transgênera: Equações poéticas de reconhecimento recíproco na recepção teatral” (tese doutoral, Universidade de São Paulo, 2018).

[8] Joanne Entwistle, “El cuerpo y la moda. Una visión sociológica” (Barcelona: Paidós, 2002).

[9] Ben Barry & Daniel Drak, “Intersectional Interventions into Queer and Trans Liberation: Youth Resistance Against Right-Wing Populism Through Fashion Hacking” Fashion Theory, v. 23, n. 6, 2019.

[10] Diana Taylor e Marcela Fuentes, “Estudios Avanzados de Performance” (México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2011).

[11] Ibidem.

[12] Laura Zambrini, “Cuerpos, indumentarias y expresiones de género: el caso de las travestis de la Ciudad de Buenos Aires”. In: Todo sexo es político. Estudios sobre sexualidades en Argentina, editado por Mario Pecheny, Carlos Figari y Daniel Jones (Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2008, p. 123-146).

[13] Ibidem.

[14] Gloria Anzaldúa, Borderlands / La Frontera: La nueva mestiza (Madrid: Artes Gráficas Cofás, 2016).

[15] O termino “cisgênero” é usado para se referir às pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento. Jaqueline Gomes de Jesús, Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos (Brasilia, 2012).

[16] Teresa de Lauretis, Alicia ya no. Feminismos, semiótica y cine (Madrid: Ediciones Cátedra, 1992).

[17] Mayra Cotta e Thais Farage, Mulher, roupa, trabalho: como se veste a desigualdade de gênero (São Paulo: Paralela, 2021).

[18] Ibidem.

[19] Ibidem.

[20] Lelya Troncoso e Isabel Piper, “Género y Memoria: articulaciones críticas y feministas” Athenea Digital, v. 15, n. 1, 2015.

[21] Diana Taylor, O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013).

[22] Diana Taylor, “Encenando a memória social: Yuyachkani”, em Performance, exílio, fronteiras: errâncias, territoriais e textuais, ed. Graciela Ravetti e Márcia Arbex (Poslit, 2002), 13-45.

[23] Ibidem.

[24] Leda Maria Martins, “Performance do tempo espiralar”, em Performance, exílio, fronteiras: errâncias, territoriais e textuais, ed. Graciela Ravetti e Márcia Arbex (Poslit, 2002), 69-91.

[25] Cf. nota 9.

[26] Luciene de Oliveira Dias, “Pindoba, resiliência e o lugar acadêmico”. Revista Nós: Cultura, Estética e Linguagens, n° 2 (2019): 36.

[27] Cf. nota 24.

[28] Pía Montalva, “Malvestir la desobediencia”. In: Moda y Poder, editado por Javiera Núñez y Colectivo Malvestidas (Santiago de Chile: Enhorabuena Editorial, 2021, p. 186-194).

[29] Ibidem.

[30] Alicia del Campo, “Ropa de calle: teatralidades sociales y sujeto político en el movimiento estudiantil”. In: Moda y Poder, editado por Javiera Núñez y Colectivo Malvestidas (Santiago de Chile: Enhorabuena Editorial, 2021, p. 100-125).

[31] Cf. nota 8.

[32] Letícia Carolina Pereira Nascimento, “Eu não vou morrer: Solidão, autocuidado e resistência de uma travesti negra e gorda para além da pandemia” Inter-Legere, v. 3, n. 28, 2020.

[33] Rosane Preciosa, Rumores discretos da subjetividade (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010).

[34]  Ibidem.

[35] Cf. nota 12.

[36] Cf. nota 9.


Referências Bibliográficas

Anzaldúa, Gloria. 2016. Borderlands/La Frontera: La nueva mestiza. Madrid: Artes Gráficas Cofás.

Barry, Ben e Drak, Daniel. 2019. “Intersectional Interventions into Queer and Trans Liberation: Youth Resistance Against Right-Wing Populism Through Fashion Hacking. Fashion Theory 23 (6): 679-709.

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Campo, Alicia del. 2021. “Ropa de calle: teatralidades sociales y sujeto político en el movimiento estudiantil”. Em J. Núñez e Colectivo Malvestidas (Eds). Moda y Poder. 100-125. Santiago de Chile: Enhorabuena Editorial.

Cotta, Mayra e Farage, Thais. 2021. Mulher, roupa, trabalho: como se veste a desigualdade de gênero. São Paulo: Paralela.

Dias, Luciene de Oliveira. 2019. “Pindoba, resiliência e o lugar acadêmico” Revista Nós: Cultura, Estética e Linguagens 4 (2): 19-39.

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